Tempos atrás um turista podia entrar em um hotel no centro da capital boliviana, La Paz, e pedir uma suíte “com vista para o próximo golpe de estado”. Em 189 anos de independência foram mais de 150 intervenções civis-militares, na contabilidade de organizações como o Instituto Latino-Americano de Ciências Sociais. Pouco mais de duas dezenas com êxito, informa o ex-presidente e historiador Carlos Mesa, autor do livro “Entre urnas e fuzis”.
No início desta semana, o Judiciário marcou a data da nova eleição boliviana: 12 de outubro, uma semana depois da brasileira. Cada convocação às urnas é uma novidade relevante para uma sociedade que sobreviveu à média de um novo presidente da República a cada ano e meio. Desta vez, há algo além: sargentos e suboficiais estão amotinados e há semanas ocupam as ruas de La Paz em protestos contra o governo de Evo Morales, candidato à reeleição em outubro.
O inusitado é que não estão propondo a derrubada do governo do líder cocalero, cuja chegada ao poder há uma década foi saudada como simbólica do fim da discriminação e do racismo em um país formado por 180 tribos. Os sargentos e suboficiais protestam contra aquilo que entendem ser o respaldo do governo Morales — por omissão — à perenidade de políticas discriminatórias e racistas dominantes nas Forças Armadas da Bolívia.
Querem ter as mesmas chances dos “brancos”, com direito a ascender na carreira aos postos de oficiais, chefes e generais. Jovens aspirantes de origem indígena podem até conseguir matrícula em escolas militares de elite, mas pelas regras não escritas da caserna boliviana podem ascender no máximo ao posto de “suboficial master”, depois de 35 anos de serviço.
Essa rebelião foi detonada não apenas pelas diferenças salariais, mas principalmente pelos privilégios da oficialidade no acesso aos recursos provenientes das atividades informais que, hoje, sustentam boa parte do Produto Interno boliviano. Começou com um orçamento paralelo, presenteado pelo falecido líder venezuelano Hugo Chávez ao governo Morales, a pretexto de ajudá-lo a se proteger da “oposição golpista e conservadora”.
Sob Chávez, o caixa da PDVSA sustentou parte significativa dos gastos militares bolivianos, principalmente com soldos da oficialidade. Não se conhece o volume de dinheiro, mas é certo que durante algum tempo as contribuições chavistas até prevaleceram sobre a fonte informal de recursos mais tradicional: os “coca-dólares”.
Em um relatório de 1982, recentemente reeditado pela organização não governamental Nizkor Direitos Humanos, o Latin America Bureau registrou: “As poderosas organizações de narcotraficantes que atuam dentro da Bolívia nada seriam ou nada poderiam se não fosse a cumplicidade direta das Forças Armadas, ou ao menos da alta hierarquia militar desse país”.
Com o aumento da produção de coca e de cocaína, nesta década de Morales no poder, aparentemente consolidou-se a aliança político-militar cujo principal produto foi a ditadura dos generais García Meza — Arce Gómez, entre 1980 e 1981. Foi o primeiro golpe de estado protagonizado pelo narcotráfico e a primeira narcoditadura da América do Sul.
Hoje, nove de cada dez toneladas de cocaína produzida na Bolívia têm como destino o Brasil, conforme dados do próprio governo brasileiro. Parte fica em território nacional, para distribuição em cidades como Rio de Janeiro e São Paulo. Lotes principais seguem contrabandeados para a Europa, via África.
Essa rebelião dos sargentos e suboficiais, numa etapa de florescimento da narcopolítica boliviana, deveria ser acompanhada com mais atenção dentro do Brasil. Motivo: o país tem 3,4 mil quilômetros de fronteira seca, e totalmente aberta, com a Bolívia.
Fonte: José Casado - O Globo